sábado, 28 de janeiro de 2012

Desafio # 2 - Subordinado ao tema "Your Pet Hates/Irritations"


Toda a gente quer a vida que um Gato tem



Trompete. Bateria ao de leve. Piano. O Jazz sobe no ar, envolvendo a sua figura numa aura de confiança inabalável. Afinal, que outro adjectivo aplicar a uma Gata?

A patinha envolta em pêlo branco sobe no ar, imperceptível. Eu leio, sem saber a emboscada que se prepara nas minhas costas. Nem um só, nem um movimento em falso. O objectivo está estabelecido, e eu, na minha condição de humana distraída, não posso fazer nada para contrariar a sua felídea vontade.

E sobe-me uma dor pela nuca. As unhas afiadas perfuram-me a pele do pescoço, enquanto tentam arrancar-me o elástico do cabelo. Grito em irritação, enquanto escondo a pele magoada com a mão e giro a cabeça na direcção da minha atacante.

Sentada naquela forma elegante e soberana, a sua expressão equivale a um encolher de ombros. Afinal, ela quer o elástico. O resto nem sequer se proporciona como válida existência na sua mente.

Observo-a de olhos abertos pelo aborrecimento, mas logo este se desfaz na sua quase totalidade. Se não fosse pelo resquício de dor pelo cabelo arrepanhado, já estava perdida na sua beleza absolutamente dominadora. Toda a figura induz o derreter de qualquer sentimento que não seja o de adoração ou empatia, e tudo nela nos amarra à obrigação de vergar a nossa vontade à sua. O sedoso pêlo cinzento com listas pretas pode mostrar-nos um fenótipo comum entre gatos, mas é o peito alvo que lhe assegura a majestia enquanto as patas, quais pantufinhas de neve, lhe conferem um ar divertido e inocente. Aliás, é esta inocência óbvia que lhe brilha nos olhos grandes de bebé simultaneamente encantadora e soberana que me faz perdoá-la de imediato e regressar, sem mais queixumes, à minha leitura. Na verdade, a perdoada aqui sou eu, como é evidente para qualquer entendimento felino.

A paz está restaurada, mas apenas no meu humilde mundinho sensaborão. Na mente da caçadora nata a vontade não foi saciada. Nas minhas costas, o olhar profundo observa a sua presa colorida e à qual apenas eu sou o obstáculo. Mas, feliz das circunstâncias, sou o obstáculo irrisoriamente fácil de contornar. Na verdade, estou a atribuir-me uma importância não realista. Ela quer o elástico. Tudo o resto nem sequer se proporciona como válida existência na sua mente.

O ritmo jazzy envolve a sua presença. Afinal, não é o ritmo que envolve todo o mundo interior de um gato? Toda a gente quer a vida que um gato tem.

A pantufa de neve sobe novamente. A presa está tão perto.

Exclamo o seu nome em tom de ameaça: Tuala!




quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

2 - Listas: Ódios de Estimação

O texto que se segue é um relato em tom humorístico e ligeiro de alguns dos meus principais ódios de estimação. De entre inúmeras possibilidades, seleccionei apenas 4 (aquelas de que me lembrei no momento) para não tornar o texto demasiado extenso ou maçador.

1 - Telenovelas

Por mais anos que passem e mais voltas que dê à cabeça, continuo a não compreender o fascínio feminino por estas formas de entretenimento. Afinal de contas, o que vê uma mulher de tão especial numa telenovela? (Ok, já sei que também há homens que vêem telenovelas, mas a percentagem dos mesmos deve ser igual ao número de mulheres que vê jogos de futebol).
Correndo o risco de ofender alguns leitores ou leitoras, devo confessar que as telenovelas sempre me pareceram funcionar como "romances de cordel para analfabetos". Honestamente, qual é o interesse em seguir regularmente uma história dividida em centenas de episódios quando basta ver o primeiro para se saber o final? Ao menos num jogo de futebol eu só sei o resultado depois de o jogo acabar...
Ah, e já agora, é impressão minha ou há sempre alguém que é atropelado nas telenovelas? Os tipos da Globo têm algum trauma de infância com as passadeiras?

2 - Livros de auto-ajuda

É difícil expressar por palavras o ódio que sinto por esta praga que invade as nossas livrarias. E "praga" é mesmo o melhor vocábulo para definir este tipo de literatura, visto que estas "criaturas" parecem reproduzir-se assexuadamente e a velocidades assustadoras! Para que serve um livro de auto-ajuda? Acima de tudo, para ajudar as finanças de quem o escreve. Isto já para não falar de que todos estes livros devem ser escritos pelo famoso Captain Obvious. Há lá coisa mais evidente do que dizer: "Lute pelos seus objectivos!", Não perca a esperança" ou "Aprenda a gostar de si!", entre outras frases semelhante, a alguém que se sente em baixo? E será que sou só eu que embirro com o tom "paternalista" e "fofinho" daquela escrita? Aquela música de embalar do "Não tenha vergonha de chorar. Você também tem o direito a sofrer. Só tem de olhar bem para dentro de si e verá que é uma pessoa fantástica!" A sério? Não dá vontade de cortar os pulsos só para chatear os tipos que escrevem estas pérolas?

3 - Teorias da Conspiração

Esta é outra praga que devora lentamente as nossas livrarias e a paciência de quem as frequenta. Os famosos "mistérios", "segredos", "códices", "códigos", "seitas" e todas as outras palavras que evoquem simultaneamente as ideias de conhecimento secreto e revelação escandalosa. A meu ver, a arma de sedução destes espécimes é semelhante à usada pelos livros de auto-ajuda, porque passa mais uma vez pelo elogio fácil ao leitor. O que um livro destes muitas vezes nos parece querer dizer é algo como isto: "Querido leitor. Tenho um segredo para lhe revelar. Um segredo de proporções monstruosas e conhecido de muito poucos. Quase ninguém pode imaginar ou muito menos compreender aquilo que tenho para lhe dizer, mas o leitor é diferente. Eu sei que o leitor compreende, porque é uma pessoa especial. E é por ser tão especial que lhe vou contar este segredo". A ironia deste tipo de literatura é que ninguém parece reparar que estes são segredos tão secretos (passe o pleonasmo) que qualquer pessoa que pague 10 ou 15€ os pode ficar a conhecer...

4 - "Emos"

Todo o melodrama cansa e é certo que todos nós já nos comportámos como "drama queens" uma vez na vida. Ainda assim, o fenómeno "emo" atingiu hoje proporções assustadoras e quase apocalípticas. Os adolescentes vestem-se de preto, maquilham-se de preto e ameaçam cortar os pulsos porque "ninguém os compreende". Sim, eu também fui adolescente, também fui melodramático e também tive fantasias suicidas, mas era algo de que uma pessoa tinha vergonha. Hoje é "fixe" ter-se pensamentos suicidas! No meu tempo havia meia dúzia de gatos pingados mais "hardcore" que, de vez em quando, se mutilavam ou suicidavam mesmo e que eram quase sempre solitários e não chateavam ninguém. Hoje há manadas inteiras de adolescentes que apregoam orgulhosamente a sua dor a todo o mundo e o seu desejo de "desaparecer para sempre", mas que raramente chegam a vias de facto. Porque não incluir como leitura obrigatória nas aulas de Português aquela pérola de cinismo do Álvaro de Campos que começa: "Se te queres matar, porque não te queres matar?".

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Rituais - Multitasking dá sabor à comida

Talvez venha do facto de ter passado a grande maioria do tempo em Coimbra a viver sozinha, este hábito. Não é um ritual, é facilmente quebrável, mas é constante mesmo assim. Se estiver sozinha em casa ou em qualquer outro lugar, para mim uma refeição é apenas um pretexto para fazer outra coisa. Ler um livro, uma revista, um site. Ver um episódio, um vídeo, um filme. Especialmente o pequeno-almoço. Levanto-me propositadamente cedo para ter mais tempo, não para beber o leite em descanso, mas para poder acabar aquele artigo, ler aquele capítulo, ver mais um Daily Show. Para mim não faz sentido uma refeição onde apenas tomo a dita, parece tempo desperdiçado. Sento-me aqui e faço agora o quê? Olho para o ar? Ah pensa no dia, no que tens para fazer. Não, obrigada, já vou pensar no meu dia tempo suficiente. O dia todo, aliás. Prefiro este tempo para ocupar a minha mente com mais do que a minha vida apenas.

Se estiver na rua e tiver fome, se não tiver nada na mala, vou comprar uma revista ou mesmo um livro de propósito para poder ter o que ler enquanto estou a lanchar. E só não pego no bloco e escrevo porque só tenho duas mãos, e uma tem de manobrar o percurso prato-boca com alguma destreza, vá.

Quando estou acompanhada, posso fazer uma adição importante à lista: a conversa. Estar com alguém dá-me mais uma razão para não conseguir tomar uma refeição sem nada para fazer: sem algo para ler, sem qualquer coisa para ver ou sem uma conversa a seguir.

Como os outros conseguem, não sei. Apenas sei que eu não posso. E para provar o que digo, estou a escrever isto com o café com leite meio bebido ao meu lado, e a mastigar a torrada que o acompanha.

Ihh que é curtinho, mas que vou fazer? Eu não sou propriamente um tema interessante para escrever rios de letras. :P

Desafio # 1 - Um Ritual

Viagens paralelas



Grande parte das minhas leituras é feita a bordo de um autocarro. Talvez aos olhos dos outros isso me faça parecer uma pessoa distante ou lunática, distraída ou intelectual, mas a verdade é que dificilmente consigo imaginar melhor forma de aproveitar uma viagem que, sendo já rotineira, nada de novo terá para me mostrar.

Gabo-me de fazer viagens paralelas: apenas numa delas estou realmente a mover-me, mas na outra saio para longe durante algum tempo. A cidade desdobra-se à minha frente, como todos os dias. As pessoas apeiam-se, juntando-se à viagem partilhada que nos levará a todos para outro dia fora de casa. Conversam, despedem-se, acenam, partem. Mas na minha mão, outros se encontram e se separam, e é desses o destino que me interessa. Pegando-me pela mão, assim me transportam para o seu mundo, e eu não me preocupo e fico livre para viajar. Do meu destino tratará o motorista, que sabe bem para onde vai. Eu não sei para onde vou, mas sei que alguém me virá buscar.

Entro no autocarro, uma passageira como as outras – mochila às costas, carteira a tiracolo e o ar ensonado de quem teria outros planos para aquela manhã. Mas quando me sento e abro o livro, logo de repente aparece alguém – etéreo para que mais ninguém o veja, mas sólido o suficiente para me roubar toda a atenção. E levam-me e eu vou e, como Caeiro, vejo como uma danada. Vejo, e sinto e penso e sei e acompanho-os por onde me levam, porque viver é coisa curta e a minha viagem física demora apenas uns minutos. Há que absorver quanto se pode, qual esponja insaciável. Quando se volta a viver? Provavelmente, só amanhã e o amanhã é longe demais.

E porque não? Os matutinos estão dentro de um espaço que é só deles, muitas vezes criado pela sonolência que ainda os acompanha neste princípio de dia. Os nossos ombros tocam-se, mas eu estou fora dali. E dentro de um espaço movido a rodas, uma viagem bem longínqua toma lugar.

O que mais me custa é regressar. Dizer-lhes adeus, até amanhã, e fechar entre capas aqueles que, logo de manhã, me acompanham e me ajudam a pensar. Mas eles não me abandonam necessariamente. A viagem física termina – é chegada a hora de também eu me apear. Mas quem diz que estou sozinha? Quem diz que agora não sou eu quem os leva a um novo mundo, um que lhes é novo e abismal, e que só poderão vislumbrar através do meu olhar?

Desafio # 1 - Um Ritual

Nota: O texto que se segue é da autoria de Samuel Alexandre. Por motivos técnicos, o texto será publicado pela Joana Fernandes.


O fogo



E se eu acendesse a lareira? Sempre entretém e aquece… É Janeiro e está um frio de rachar, mas já alguém o disse antes de mim… Acendo? Não acendo? Estou sentado no sofá da sala e espreito a noite e as estrelas pelo canto do meu olhar absorto nas banalidades da TV. São curtos estes dias de Inverno… O sol levanta-se sem pressas e despede-se sem cerimónias. Há quem chore baba e ranho pelas longas tardes de Verão, mas eu não me ralo. Prefiro o sossego e o silêncio ao estardalhaço impúdico dos serões de Agosto.

Ainda assim tenho frio e devia mesmo acender a lareira.

- Irra, que tens sempre as mãos geladas!

É verdade, embora a minha mãe pareça espantar-se pela milionésima vez. Tenho sempre as mãos frias em qualquer altura do ano, mas nos dias mais frios chegam mesmo a ficar roxas e com algumas pintas alaranjadas. Má circulação arterial, talvez?

Decidido e enregelado, levanto-me finalmente do sofá e saio de casa em direção ao pátio e à casa da caldeira. A lenha está por cima de uma prateleira e espalhada um pouco ao acaso pelo chão da pequena arrecadação. Pinho, oliveira, laranjeira, e outras espécies que não consigo identificar à primeira vista. Encho à pressa um pequeno caixote com um sortido de galhos, pinhas, folhas de louro, acendalhas e meia dúzia de toros mais maciços. Satisfeito e carregado, regresso a casa e passo pela cozinha para roubar a caixa de fósforos. Não me falta nada, posso começar.

Coloco uma pinha no centro da lareira e cubro-a com uma pequena pirâmide de galhos e folhas secas.

O palco está montado. Acendo o fósforo e a acendalha. Seguro a acendalha com a tenaz e aproximo-a da pinha. Tímida e enfermiça, a chama parece hesitar em ferir a pinha e a pirâmide, até que finalmente se decide e se exibe em todo o seu esplendor. Instável a princípio, o fogo arde agora com mais convicção e segurança. Junto mais ramos e folhas secas e aproximo um dos toros de pinho. Lentamente, a chama vai lambendo e consumindo a madeira numa carícia voluptuosa e fatal. Parece-me que o fogo "pegou" bem. Chego ao lume mais alguns tições, arrasto um banquinho de madeira, sento-me junto do lume, aqueço-me e recordo…

Porque gosto tanto do fogo? Desde pequeno, no quintal dos meus avós, eu, o meu irmão e o meu primo olhávamos fascinados para as chamas das fogueiras que se ateavam ocasionalmente para queimar lixo ou velharias. Uma fogueira era sempre uma festa. Plásticos, pneus, fruta podre ou roupa velha, a nossa curiosidade atirava tudo para as chamas sem piedade. Como era doce o prazer da destruição! E que surpresa e maravilha se espelhava no nosso olhar quando, de vez em quando, a chama tomava tons azuis ou esverdeados!

De outras vezes, à lareira, o encanto era diferente. Não havia tanta brincadeira, mas os olhos não se desviavam do bailado das chamas. Às vezes, ou porque a lenha não estava bem seca ou porque a chaminé fumava mal, a sala enchia-se de fumo e os olhos ardiam até às lágrimas, mas não arredávamos pé. Porquê? É o prazer da repetição. No Verão, quando por vezes ia à praia, sentava-me no areal durante horas a ver as ondas crescerem e rebentarem na areia. O movimento repetia-se continuamente, mas nunca me aborrecia. Talvez as chamas me lembrem um pequeno mar laranja, talvez seja por isso que gosto tanto de as olhar…

Alguns tições estão quase desfeitos e escorregaram um pouco da sua posição inicial. Regresso à infância e chego ao lume algumas folhas de louro. A chama desperta subitamente, furiosa e mal-humorada e um crepitar vivo e efervescente ecoa por toda a sala. Porém, cansa-se depressa e retoma rapidamente o seu estado inicial. Os tições desfazem-se facilmente com um breve toque da tenaz e as brasas acumulam-se no fundo como pequenos cubos incandescentes.

Tenho ainda muita lenha, mas mais um ou dois toros bastam. Espreito o caixote e escolho um toro maciço de oliveira. Vai levar tempo a "moer", deve durar-me a noite toda.

Tenho a cara avermelhada e o corpo quente. De vez em quando, o calor intenso do lume força-me mesmo a afastar ligeiramente o banco ou a mudar de posição para "torrar" do outro lado. Não importa, sinto-me bem. Hoje, como dantes, o fogo acalma e aquece, consola e faz companhia. E é por isso que, como amigo, eu me sento a seu lado.

domingo, 12 de abril de 2009

You. Wish.

As bailarinas rodopiam enquanto a música sobe mais alto e os folhos das saias formam cores em seu redor. Não há nada que as faça parar, porque a música sai da Natureza e inspira-lhes o ser com mais vigor do que as rajadas de vento nos ramos prematuros. A combatente arrancou o coração para que nunca mais lho possam ferir e regressa, pela mão do Corvo, à fogueira que cintila ardentemente. Junto da luz, Olivia aprecia o brilho das botas que a tornam mais fortes, esperando o nascer do dia. E nas sombras, o guerreiro lusitano aguarda sorrindo calmamente perante a sabedoria daquele que sabe o que o espera. Observo-o com ansiedade, porque quero chegar mais perto e dizer-lhe que o vou guiar, mas ainda não posso. Do outro lado, a Pirata e o seu clã esperam em silêncio. Talvez nenhum deles possa ver a luz do dia, mas ela observa-me com atenção. O sorriso desafiador é permanente naquele rosto alvo, e no olhar cinzento cintila uma miríade de possibilidades que eu nunca consegui domar. Vais ser sempre melhor do que eu, Capitã. Miranda é diferente. No seu vestido encarnado e com um pássaro poisado placidamente no seu dedo, ainda espera por mim, quem sabe por quanto tempo mais, e o seu rosto reflecte ainda o anseio pela Liberdade e pela paixão que a domou, e que parece não poder ser levantada. Todos esperam por mim.E, no entanto, eu não sei que passo tomar. Para onde quero ir a bússola não pode indicar enquanto não parar de girar.Vejo então o olhar brilhante que me ilumina das sombras. O riso travesso montado no carcaju. E a mão forte, ainda que delicada, que se estende na minha direcção.Os três avançam, o passo forte e determinado que apenas a Pirata parece querer relembrar-me através da curvatura inteligente dos seus lábios. O que diria Gwyndolin se me visse agora? Não suporto nem imaginar; o rosto pequenino enrugado de incredulidade. Afinal, o que aconteceu à tua espada e à tua voz, perguntar-me-ia. Tu eras insuportavelmente teimosa, acrescentaria.
Os três Guardiães aproximam-se de mim, mas é Ela quem me dá a mão e me ensina o caminho. Mas esta é uma tarefa minha, apesar de tudo. Todos dependem dela, mas a batalha é só minha.
Ao chegar à orla da clareira onde nos reunimos, o meu passo detém-se.
Procura a Bruxa e a Aldeã, diz-me a Guardiã da Floresta. Elas contam-te a sua história. Elas mostram-te o caminho.
Olho em meu redor. Os meus olhos poisam, previsivelmente, no Guerreiro e na Pirata. O futuro e o passado caminham de mãos dadas.
Mas entre eles, mais difícil de percorrer, está o presente. E esse só o próprio pode conquistar. O presente. É. Meu.Volto-me para as sombras que envolvem a Floresta. Não quero, nem posso querer, ter alternativa. Em frente está a resposta.Atrás de mim, a música desvanece-se um pouco à medida que avançando por entre as árvores. Mas não importa. A solidão é apenas uma secura demasiado frágil perante o sopro da música e da presença eterna daqueles que nos impelem na direcção dos sonhos...

quinta-feira, 19 de março de 2009

Lya

Bem sei que este não é post que eu devia estar a fazer, mas sim um desafio semelhante ao que propus ao Samuel. No entanto, como ainda não tive oportunidade para me dedicar a ele, resolvi postar aqui um pequeno (o tamanho é discutível) texto que escrevi em 2006. Este não foi corrigido, portanto, queiram perdoar qualquer erro que possa surgir. Devo também acrescentar que eu própria noto bem o estilo de escrita que tinha na altura, certamente diferente (ainda que não muito) daquele que tenho agora.



O ruído de passos cessou a poucos metros de si, restituindo o silêncio sepulcral àquele local escondido por entre verdes folhagens.
Adain não virou a cabeça para ver quem era. Queria estar sozinho, e, fosse quem fosse que ali fora, certamente saberia isso muito bem. De qualquer forma, mesmo que o seu corpo quisesse reagir instintivamente, não teria tido sucesso. A profunda dor no seu coração extravasara havia muito para o resto do corpo, obliterando todos os seus sentidos, incluindo algumas das reacções básicas mais básicas, como voltar a cabeça ao som de passos.
— Calculei que pudesse encontrar-te aqui.
Adain reconheceu a voz do primo e sentiu uma súbita vontade de lhe gritar. Contudo, a sua conduta sempre conseguira mantê-lo extremamente calmo, mesmo quando as situações não se avizinhavam pacíficas, pelo que se limitou a fechar um pouco mais as mãos, quase imperceptivelmente, continuando tão quieto quanto antes.
— Não devias estar aqui.
— Quero ficar perto dela. — respondeu secamente Adain.
— Ela não quereria que te martirizasses dessa forma.
— O que é que tu sabes sobre ela? Eu é que era marido dela.
Cormack não respondeu de imediato. Suspirou longamente e passou a mão pelo rosto, antes de avançar um pouco para mais perto de Adain.
— Ela era minha amiga. Uma grande amiga. Naturalmente, sei umas coisas sobre ela.
— Vieste aqui para me dizer isso? — perguntou Adain, no seu tom neutro.
— Não — respondeu o outro. — Vim para saber se precisas de alguma coisa, se estás bem. Mas já vi que não. Volta para casa. A tua mãe anda louca à tua procura, ninguém te vê desde o funeral, é melhor voltares e descansares toda a gente.
Adain não respondeu. A seus pés, um pequeno riacho corria placidamente, alguns raios de sol cintilando na superfície azulada. O leve ruído do choque da água nas pequenas pedras da margem, pequenos cardumes de peixinhos no seu caminho tão certo, toda aquela pureza imperturbável do Elemento mais antigo de todos os tempos. Acocorou-se lentamente e esticou o braço com relutância e solenidade, perfurando a lisa superfície da água com a ponta dos dedos. Estava tão fria.
— Ela era tudo isto. — disse, num múrmurio que, noutras cirscunstâncias teria sido inaudível.
Contudo, naquele lugar, tudo parecia querer ouvir os murmúrios de Adain. Estava tudo tão silencioso que dir-se-ia que a Natureza ordenara que parasse tudo em redor, como que temendo que as palavras de Adain se perdessem para sempre. As densas folhagens das verdes árvores, nenhuma se atrevia ao mínimo movimento. Nenhum zumbido ou bater de asas de insectos nas suas sempre tão atinadas rotinas. Nenhum cântico de pássaro. Nenhuma borboleta ou abelha recolhendo o néctar das coloridas flores. Mesmo o riacho parecia dar o seu melhor para que as suas águas fluíssem silenciosamente.
— Ela era tudo isto. — repetiu Adain, ainda com os dedos na água gelada. — O Sol na água, a sua própria frieza. As folhas verdes, as flores vermelhas, púrpura e brancas, todas as cores na Natureza. Esta beleza incomparável, tão quieta mas tão magnífica, e, quando ela quisesse, num breve instante, ficava sombria e irrequieta, mas sempre bonita, como a Natureza.
Cormack escutava atentamente, mas não respondeu. Olhou para a sua direita e, avistando uma montículo de terra firme coberto da mesma erva que cobria o chão, avançou para ele e sentou-se.
— Sentimos todos a falta dela — disse.
— O espírito era todo de Água. — continuou Adain, como se não tivesse ouvido o primo. — Ninguém esperaria outra coisa vinda daqueles grandes olhos…nunca soube que cor deveria atribuir-lhes. Era uma mistura. Tão indefinida e imperscrutável quanto ela conseguia ser, por vezes, quando se esforçava por isso. Mas havia mais, havia muito mais. Uma coisa muito contraditória. Ela era Água, mas também era Fogo. Irónico, sempre achei. Ela sabia ser Fogo. Se lhe apetecesse, era capaz. Mas era um fogo que ardia dentro de mim. Só ela sabia como ateá-lo. Nunca…percebi.
Cormack sorriu.
— Havia quem gostasse de poder dizer o mesmo, Adain. — disse, observando a quietude das folhagens acima da sua cabeça. — Ela contagiava toda a gente com aquela vontade fervorosa de fazer sorrir toda a gente. E, no entanto, ela era a imagem de uma…rapariga normalíssima.
— Era a minha pequena Fada.
— Eras o seu…
— Como é que eu pude? — Adain ergueu-se, bruscamente, interrompendo Cormack, que olhou para ele alarmado.
— A culpa não é tua, as coisas são como são…
— Não!
Adain resfolegava, como quem acabara de ser mordido por um bicho, andando de um lado para o outro. Cormack observava-o no seu passo enervado, sem saber o que dizer ou fazer. Nunca, em vinte e três anos, sonhara sequer com a possibilidade de ver o seu sempre tão calmo e controlado primo ter um ataque de nervos.
— Adain, acalma-te. Todos nós compreendemos que te…
— Não! — gritou Adain, uma vez mais. — Vocês não percebem, ninguém percebe!
— Anda, vamos arranjar-te um copo de whisky ou um calmante. — ordenou Cormack, levantando-se do monte de erva e sacudindo as calças com as palmas das mãos. — A minha irmã traz sempre um ou dois na carteira, certamente que… Adain, pára! Estás a lembrar-me a Lya, quando andava aflitíssima com alguma coisa. Logo tu que tentavas sempre acalma-la, logo que tu que nunca foste de explodir com…
— Agora sou! — bradou Adain, parando em frente a Cormack. — Ela era parte de mim, parte de mim! Ela conseguia animar-me quando eu ficava sério, conseguia fazer-me sentir forte quando colocava a cabeça na curva do meu pescoço, ela…
Cormack olhou-o directamente nos olhos. Brilhavam com uma espécie de fúria contida e Cormack suspeitava que sabia porquê.
— Continua — disse ao primo.
Adain voltou-lhe novamente as costas e fixou o olhar no riacho.
— Eu nunca fui como tu. — disse Adain, num tom de voz mais calmo.
— O que é que queres dizer?
— Nunca tive a tua…capacidade para dizer a coisa certa na hora certa. Eu via como tu tratavas tão bem dela e como ficava animada depois de falar contigo. Isso magoava-me, porque eu sentia que não tinha jeito, não tinha…coragem, não sei, para lhe dizer certas coisas.
— Não precisavas de muito jeito. Toda a gente gosta de se sentir apreciado, toda a gente gosta de se sentir acarinhado, principalmente quando a visão do mundo está meio retorcida.
— Eu não sabia como. Nunca soube exactamente como. Ficava sempre atarantado quando ela se fechava naquele mundo sombrio criado por ela mesma quando estava desiludida ou muito triste.
— Só tinhas de a abraçar e de lhe dizer que, fossem quais fossem os seus erros, ou aquilo a que ela chamava frustrações ou mesmo falhanços…tu gostavas dela, e estavas ali para a proteger, porque ela era a tua princesa.
— Ela não era do tipo frágil. Tinha toda aquela vida, todos aqueles sonhos dentro dela. Ficava triste quando algumas coisas corriam de forma diferente ao que planeara, mas voltava sempre ao normal.
— Eu admirava-a por isso, mas às vezes ficamos cansados de lutar ou de trabalhar e precisamos de algum tipo de mimo. Não são só as crianças pequenas que precisam de se sentir acolhidas. Lya também precisava de ti, e dos amigos, tal como todos nós precisávamos dela. Era forte, sim. Era bastante coragem e destemida — Cormack permitiu-se um risinho enquanto à sua memória afloravam imagens de Lya —, mas era humana. E também temia.
— Como é que eu pude…deixá-la ir…
— Não foi culpa tua.
— …sem lhe dizer, sem lhe mostrar o quanto…Aquele gesto no ar que ela fazia com os dedos quando falava, o rosto dela quando estava adormecida, a forma como ela colocava a cabeça no meu ombro, o riso. A maneira como disparatava quando torrava as refeições na cozinha e a forma como pedia desculpas por estarmos a encomendar novamente pizza…e como em seguida desatava a rir e a troçar de si própria. Como mordia a caneta quando traçava esboços dos seus quadros e… a forma como pegava nos livros e… Só ela conseguia perturbar todas as forças da disciplina que eu tecia à minha volta quando…
— Ela admirava-te, priminho. Todas as manias e todas as coisas que em ti a irritavam profundamente. Mesmo isso ela adorava. — disse Cormack, aproximando-se e colocando um braço sobre os ombros de Adain.
— Eu admirava-a. Tanto. E amava-a ainda mais.
— Eu acredito. Vindo de ti, com essa intensidade, só pode ser verdade.
— Se ao menos eu pudesse ter uma nova vida com ela, só para corrigir todos os erros que cometi…
— Disseste que ela era tudo isto. — lembrou Cormack, enquanto encaminhava o primo para fora daquele pedaço de floresta. — Enquanto falavas, certamente ela ouviu-te. Anda, vamos para casa.
— Já não é a minha casa, sem a Lya ao pé de mim.
— Ela vai estar sempre ao pé de ti, Adain. Nem que alguém tentasse contrariar isso, é uma ligação demasiado forte, que vos une. Vamos descansar. Foi um dia longo.
Cormack afastou Adain de perto do riacho e incitou-o a caminhar calmamente pela erva, em direcção a casa. Atrás de ambos, a Natureza recuperava todos os seus sons, mas era tarde demais para que Adain ou Cormack pudessem ouvir a restolhar das folhagens, o zumbido dos insectos ou o forte correr da água a encher todo aquele lugar colorido.
Um vislumbre de uma larga manga de tecido azul, um gesto de dedos ebúrneos como neve e o curvar deliciado de lábios vermelhos como sangue apareceram e desapareceram no mesmo instante.
Havia toda uma eternidade à sua frente, mas nada seria como as palavras que acabara de ouvir e sentir vindas de Adain. Agora podia descansar.
Não era tarde para Lya.