Bem sei que este não é post que eu devia estar a fazer, mas sim um desafio semelhante ao que propus ao Samuel. No entanto, como ainda não tive oportunidade para me dedicar a ele, resolvi postar aqui um pequeno (o tamanho é discutível) texto que escrevi em 2006. Este não foi corrigido, portanto, queiram perdoar qualquer erro que possa surgir. Devo também acrescentar que eu própria noto bem o estilo de escrita que tinha na altura, certamente diferente (ainda que não muito) daquele que tenho agora. O ruído de passos cessou a poucos metros de si, restituindo o silêncio sepulcral àquele local escondido por entre verdes folhagens.
Adain não virou a cabeça para ver quem era. Queria estar sozinho, e, fosse quem fosse que ali fora, certamente saberia isso muito bem. De qualquer forma, mesmo que o seu corpo quisesse reagir instintivamente, não teria tido sucesso. A profunda dor no seu coração extravasara havia muito para o resto do corpo, obliterando todos os seus sentidos, incluindo algumas das reacções básicas mais básicas, como voltar a cabeça ao som de passos.
— Calculei que pudesse encontrar-te aqui.
Adain reconheceu a voz do primo e sentiu uma súbita vontade de lhe gritar. Contudo, a sua conduta sempre conseguira mantê-lo extremamente calmo, mesmo quando as situações não se avizinhavam pacíficas, pelo que se limitou a fechar um pouco mais as mãos, quase imperceptivelmente, continuando tão quieto quanto antes.
— Não devias estar aqui.
— Quero ficar perto dela. — respondeu secamente Adain.
— Ela não quereria que te martirizasses dessa forma.
— O que é que tu sabes sobre ela? Eu é que era marido dela.
Cormack não respondeu de imediato. Suspirou longamente e passou a mão pelo rosto, antes de avançar um pouco para mais perto de Adain.
— Ela era minha amiga. Uma grande amiga. Naturalmente, sei umas coisas sobre ela.
— Vieste aqui para me dizer isso? — perguntou Adain, no seu tom neutro.
— Não — respondeu o outro. — Vim para saber se precisas de alguma coisa, se estás bem. Mas já vi que não. Volta para casa. A tua mãe anda louca à tua procura, ninguém te vê desde o funeral, é melhor voltares e descansares toda a gente.
Adain não respondeu. A seus pés, um pequeno riacho corria placidamente, alguns raios de sol cintilando na superfície azulada. O leve ruído do choque da água nas pequenas pedras da margem, pequenos cardumes de peixinhos no seu caminho tão certo, toda aquela pureza imperturbável do Elemento mais antigo de todos os tempos. Acocorou-se lentamente e esticou o braço com relutância e solenidade, perfurando a lisa superfície da água com a ponta dos dedos. Estava tão fria.
— Ela era tudo isto. — disse, num múrmurio que, noutras cirscunstâncias teria sido inaudível.
Contudo, naquele lugar, tudo parecia querer ouvir os murmúrios de Adain. Estava tudo tão silencioso que dir-se-ia que a Natureza ordenara que parasse tudo em redor, como que temendo que as palavras de Adain se perdessem para sempre. As densas folhagens das verdes árvores, nenhuma se atrevia ao mínimo movimento. Nenhum zumbido ou bater de asas de insectos nas suas sempre tão atinadas rotinas. Nenhum cântico de pássaro. Nenhuma borboleta ou abelha recolhendo o néctar das coloridas flores. Mesmo o riacho parecia dar o seu melhor para que as suas águas fluíssem silenciosamente.
— Ela era tudo isto. — repetiu Adain, ainda com os dedos na água gelada. — O Sol na água, a sua própria frieza. As folhas verdes, as flores vermelhas, púrpura e brancas, todas as cores na Natureza. Esta beleza incomparável, tão quieta mas tão magnífica, e, quando ela quisesse, num breve instante, ficava sombria e irrequieta, mas sempre bonita, como a Natureza.
Cormack escutava atentamente, mas não respondeu. Olhou para a sua direita e, avistando uma montículo de terra firme coberto da mesma erva que cobria o chão, avançou para ele e sentou-se.
— Sentimos todos a falta dela — disse.
— O espírito era todo de Água. — continuou Adain, como se não tivesse ouvido o primo. — Ninguém esperaria outra coisa vinda daqueles grandes olhos…nunca soube que cor deveria atribuir-lhes. Era uma mistura. Tão indefinida e imperscrutável quanto ela conseguia ser, por vezes, quando se esforçava por isso. Mas havia mais, havia muito mais. Uma coisa muito contraditória. Ela era Água, mas também era Fogo. Irónico, sempre achei. Ela sabia ser Fogo. Se lhe apetecesse, era capaz. Mas era um fogo que ardia dentro de mim. Só ela sabia como ateá-lo. Nunca…percebi.
Cormack sorriu.
— Havia quem gostasse de poder dizer o mesmo, Adain. — disse, observando a quietude das folhagens acima da sua cabeça. — Ela contagiava toda a gente com aquela vontade fervorosa de fazer sorrir toda a gente. E, no entanto, ela era a imagem de uma…rapariga normalíssima.
— Era a minha pequena Fada.
— Eras o seu…
— Como é que eu pude? — Adain ergueu-se, bruscamente, interrompendo Cormack, que olhou para ele alarmado.
— A culpa não é tua, as coisas são como são…
— Não!
Adain resfolegava, como quem acabara de ser mordido por um bicho, andando de um lado para o outro. Cormack observava-o no seu passo enervado, sem saber o que dizer ou fazer. Nunca, em vinte e três anos, sonhara sequer com a possibilidade de ver o seu sempre tão calmo e controlado primo ter um ataque de nervos.
— Adain, acalma-te. Todos nós compreendemos que te…
— Não! — gritou Adain, uma vez mais. — Vocês não percebem, ninguém percebe!
— Anda, vamos arranjar-te um copo de whisky ou um calmante. — ordenou Cormack, levantando-se do monte de erva e sacudindo as calças com as palmas das mãos. — A minha irmã traz sempre um ou dois na carteira, certamente que… Adain, pára! Estás a lembrar-me a Lya, quando andava aflitíssima com alguma coisa. Logo tu que tentavas sempre acalma-la, logo que tu que nunca foste de explodir com…
— Agora sou! — bradou Adain, parando em frente a Cormack. — Ela era parte de mim, parte de mim! Ela conseguia animar-me quando eu ficava sério, conseguia fazer-me sentir forte quando colocava a cabeça na curva do meu pescoço, ela…
Cormack olhou-o directamente nos olhos. Brilhavam com uma espécie de fúria contida e Cormack suspeitava que sabia porquê.
— Continua — disse ao primo.
Adain voltou-lhe novamente as costas e fixou o olhar no riacho.
— Eu nunca fui como tu. — disse Adain, num tom de voz mais calmo.
— O que é que queres dizer?
— Nunca tive a tua…capacidade para dizer a coisa certa na hora certa. Eu via como tu tratavas tão bem dela e como ficava animada depois de falar contigo. Isso magoava-me, porque eu sentia que não tinha jeito, não tinha…coragem, não sei, para lhe dizer certas coisas.
— Não precisavas de muito jeito. Toda a gente gosta de se sentir apreciado, toda a gente gosta de se sentir acarinhado, principalmente quando a visão do mundo está meio retorcida.
— Eu não sabia como. Nunca soube exactamente como. Ficava sempre atarantado quando ela se fechava naquele mundo sombrio criado por ela mesma quando estava desiludida ou muito triste.
— Só tinhas de a abraçar e de lhe dizer que, fossem quais fossem os seus erros, ou aquilo a que ela chamava frustrações ou mesmo falhanços…tu gostavas dela, e estavas ali para a proteger, porque ela era a tua princesa.
— Ela não era do tipo frágil. Tinha toda aquela vida, todos aqueles sonhos dentro dela. Ficava triste quando algumas coisas corriam de forma diferente ao que planeara, mas voltava sempre ao normal.
— Eu admirava-a por isso, mas às vezes ficamos cansados de lutar ou de trabalhar e precisamos de algum tipo de mimo. Não são só as crianças pequenas que precisam de se sentir acolhidas. Lya também precisava de ti, e dos amigos, tal como todos nós precisávamos dela. Era forte, sim. Era bastante coragem e destemida — Cormack permitiu-se um risinho enquanto à sua memória afloravam imagens de Lya —, mas era humana. E também temia.
— Como é que eu pude…deixá-la ir…
— Não foi culpa tua.
— …sem lhe dizer, sem lhe mostrar o quanto…Aquele gesto no ar que ela fazia com os dedos quando falava, o rosto dela quando estava adormecida, a forma como ela colocava a cabeça no meu ombro, o riso. A maneira como disparatava quando torrava as refeições na cozinha e a forma como pedia desculpas por estarmos a encomendar novamente pizza…e como em seguida desatava a rir e a troçar de si própria. Como mordia a caneta quando traçava esboços dos seus quadros e… a forma como pegava nos livros e… Só ela conseguia perturbar todas as forças da disciplina que eu tecia à minha volta quando…
— Ela admirava-te, priminho. Todas as manias e todas as coisas que em ti a irritavam profundamente. Mesmo isso ela adorava. — disse Cormack, aproximando-se e colocando um braço sobre os ombros de Adain.
— Eu admirava-a. Tanto. E amava-a ainda mais.
— Eu acredito. Vindo de ti, com essa intensidade, só pode ser verdade.
— Se ao menos eu pudesse ter uma nova vida com ela, só para corrigir todos os erros que cometi…
— Disseste que ela era tudo isto. — lembrou Cormack, enquanto encaminhava o primo para fora daquele pedaço de floresta. — Enquanto falavas, certamente ela ouviu-te. Anda, vamos para casa.
— Já não é a minha casa, sem a Lya ao pé de mim.
— Ela vai estar sempre ao pé de ti, Adain. Nem que alguém tentasse contrariar isso, é uma ligação demasiado forte, que vos une. Vamos descansar. Foi um dia longo.
Cormack afastou Adain de perto do riacho e incitou-o a caminhar calmamente pela erva, em direcção a casa. Atrás de ambos, a Natureza recuperava todos os seus sons, mas era tarde demais para que Adain ou Cormack pudessem ouvir a restolhar das folhagens, o zumbido dos insectos ou o forte correr da água a encher todo aquele lugar colorido.
Um vislumbre de uma larga manga de tecido azul, um gesto de dedos ebúrneos como neve e o curvar deliciado de lábios vermelhos como sangue apareceram e desapareceram no mesmo instante.
Havia toda uma eternidade à sua frente, mas nada seria como as palavras que acabara de ouvir e sentir vindas de Adain. Agora podia descansar.
Não era tarde para Lya.